sábado, 30 de abril de 2011

Ansiedade, 20/04 e A Festa do Apocalipse

ou Como apesar de todos os meus medos eu amei esse aniversário
ou Desculpa amigos lindos que me aguentaram maluca até altas horas
ou Obrigada amigos lindos que endoidaram comigo na minha festa pagã

A Terra tem mais de 6 bilhões de habitantes e pode ter certeza de que você é só mais um nessa multidão. Por mais que você ganhe o prêmio Nobel, ou que a foto da sua formatura esteja na parede da sua faculdade, existem mais outros 6 bilhões de pessoas que, assim como você, têm braço, perna, respiram e comem.
O dia do aniversário é o único dia que é só seu. Naquele dia, você é especial. Se o trocador do ônibus olhar sua carteirinha de estudante com um pouco de carinho, ele te dará parabéns, seus amigos te mandam SMSs, sua mãe te acorda com um abraço.
O problema reside em: eu fico querendo que seja o dia mais feliz do ano e isso não depende só de mim. Depende do que as outras pessoas estão dispostas a fazer por mim, mas será que eu posso ficar parada apenas esperando que os outros tornem o meu dia especial? Quando você já fez mais de dez aniversários, você percebe que não. Nos primeiros é simples porque, em teoria, você ainda é incapaz de organizar uma festa, de propôr brincadeiras, e suas tias, o palhaço, a produtora do buffet se encarregam disso. Talvez um ano você consiga uma festa surpresa, no outro ganhe o presente mais inesperado de todos, com o cartão mais sentimental, brega e belo, mas e no ano seguinte?
Ano após ano eu passo o dia 20 de abril em alvoroço, coração na boca, esperando que algo surpreendente me aconteça para que não seja só mais um dia no meu calendário. Nos dias anteriores, eu conto para todo, todotodotodotodo mundo que eu vou fazer aniversário, sem querer me decepcionar com algum esquecimento. No dia, eu fico de bico calado, para receber os resultados - sempre felizes. Apesar de tudo, eu gosto de espotaneidade, e quero que as pessoas se lembrem simplesmente porque gostam de mim.
Em 2009, marquei um piquenique e fiz do meu aniversário de 18 anos uma despedida da infância. Foi maravilhoso, apesar de toda uma enorme ameaça de chuva e dos inúmeros gatos no parque (que na verdade só coroaram a comemoração com sua doçura). Em 2010 não foi tão doce, estava cheia de expectativas que não se cumpriram, mas só tenho a agradecer a mamãe, que fez da festa na praia um dos momentos mais repletos de satisfação da minha vida. Eu passei semanas teimando que queria uma fogueira, lutamos atrás de uma barraca de praia que aceitasse atear fogo correndo o maior risco de causar um incêndio em todas as barracas (de palha!), e por fim conseguimos que um funcionário juntasse alguns gravetos e acendesse um foguinho. Mas mamãe tinha tido a ideia do século que encheu meu coração de alegria: pediu a todos que pegassem dois pedaços de papel e escrevessem uma virtude minha em um deles e um defeito no outro. Formamos uma roda e todos leram seus papéis. O do defeito, joga pra fogueira! O da virtude eu guardei com carinho no coração e numa caixa.
Em 2011, para comemorar meu último aniversário no Brasil (por algum tempo), eu estava decidida a fazer o máximo para ter lembranças maravilhosas. Para o dia 20, levei o melhor brownie já feito por mim e uma vela da Ariel para a faculdade. Cantamos parabéns na salinha do PET, eu arrumei as coisas, acendi a vela e soltei um: "Pronto, agora vocês podem cantar!" (Sou mandona!!!) Devoramos e estava uma delícia incomparável a qualquer outra coisa que eu tenha cozinhado na vida. Juro que não era só pela especialidade da data, porque todo mundo amou também. Voltei para casa a pé conversando sobre a vida com os meninos, algo que eu amo fazer, e à noite teve pizza com a família. Foi muito light e lindo. Meu priminhos meigos e minis fizeram big cartões repletos de fofuras e ganhei presentes, o que é sempre bom. Conversei sobre a minha prova oral do francês (uma excelente história que não pode ser publicada online), meu primo que quer virar piloto de helicóptero, homens, coisinhas de menina, assuntos lindos. Cheguei em casa em paz e dormi contentíssima porque não tinha aula no dia seguinte. (Fazer aniversário em véspera de feriado: eu recomendo.)
Sexta-feira (22) foi a festa mais maluca que eu poderia imaginar. A festa mais maluca que eu poderia imaginar. Na sexta-feira da paixão. Desculpa, mas foi. Eu marquei a data e nem percebi. A ideia era: meu pai, que veio de Salvador só para ficar comigo breves instantes antes que eu me mandasse para o exterior, pegava o avião às 14h da sexta, então só nessa data eu estaria livre para me divertir. Na sexta-feira seguinte (ontem) foi prova de Eletromagnetismo, então a semana pós-aniversário é semana-eletromag, então era bom ter o domingo livre para estudar loucamente. Assim, o sábado fica para a ressaca da festa, que fica pra sexta.
No sábado anterior eu fui numa loja de festas, e ajudei mamãe a estourar o cartão dela. Eu nunca consegui me despedir da infância no aniversário de 18 anos, e fiz a festa naquele paraíso de besteiras lindas. Sexta-feira minha bff chegou cedinho e me ajudou a:

fazer lembrancinhas (que chamamos carinhosamente de Kit Ressaca),
encher todas de ar para parecer que estavam cheias de coisa,
fazer cachorrinhos (a marca de qualquer festa na minha casa, incluindo os aniversários das gatas),
encher uma centena de balões (pode confiar, estava escrito na embalagem),
pregar metade deles no teto,
colocar as luzinhas piscantes de Natal pela casa,
colocar chantilly no bolo,
arrumar a playlist da night e
me maquiar (com a sombra que ela mesma me deu de presente).

A casa foi toda modificada para caber adolescentes dançantes (acabou sendo para caber a aniversariante dançante, mas amo todos que cederam aos puxões de "Dança comiiiiiiiiigo!"), velas foram posicionadas para finalizar a iluminação da casa e uma mesa foi posta ao lado do sofá com canetinhas, papéis e envelopes, à espera de pessoas amantes de Jana e seus cartões. No corredor de entrada, coloquei nossos calçados para incentivar todo mundo a também tirar os seus. Na parede do corredor de entrada, um cartaz repleto de bigodes, com o título: Escolha o seu bigode! O quarto da minha mãe, território proibido. A mesa redonda, com bolo, brownie e infinitas aranhinhas. Na cozinha, os drinks, com o cardápio feito verbalmente por mim: A Jana É Linda (vodca e fanta), A Jana É Maravilhosa (red fruits e gelo), etc, etc. (Não tem et coetera não, gente, eu fui impedida de continuar com minha lindeza pelos convidados e suas risadas de dó de mim.)
Foi a minha festa dos sonhos. A minha festa dos sonhos. Eu estava com tanto, tantotantotanto medo de ficar de coração partido, mas me diverti tanto, pulei até de madrugada, dancei todas as músicas que amo, chacoalhei o cabelo pra lá e pra cá, como eu jamais faria fora de casa, comi salgadinho, bombom, virei copos, mostrei meus livros, cantei errado, fiz tudo o que eu faço e me deixa feliz. E eu fiquei muito louca, com minha felicidade aumentada exponencialmente. Antes de tudo, eu estava com uma pilha de pessoas que amo no meu lar, que é, o quê?, o lugar que eu mais amo no mundo. Agradeço a quem amarrou meu cabelo com a fita dos balões, porque aliviou o calor e o black power. Agradeço a todos os cartões lindos de morrer com palavras pra guardar nas entranhas do meu miocárdio. Agradeço a todos que fizeram as filmagens, que, apesar de terem me deixado levemente fula na hora (voyeur! fecha! chega!), caem bem na hora da nostalgia (já assisti tudo duas vezesssss). No final ainda teve cantoria no karaokê. O parabéns só cantamos meia-noite, com os sobreviventes da festa, eu que "não contava [como sobrevivente]", só porque ainda estava muito felizzzzzzzz, muitas estrelinhas coloridas planando em pleno ar e dinheirinhos lindos que tiveram de ser jogados com a mão (o negócio não estourou!) e, fechando com chave de ouro, brilhantes e as cinzas do seu pior inimigo, briga de bolo. Briga. De. Bolo. Quando eu penso nas coisas que fazem de uma festa inesquecível, eu incluo briga de bolo. Mas eu sou racional, eu faço engenharia, eu estava na minha casa, era meu aniversário de 20 anos (não 8) e jamais considerei uma briga de bolo como integrante do carpádio de diversões da noite. De uma forma ou de outra, eu comecei essa briga. O chão, que já tinha estrelas coloridas, dinheirinhos, papéis de bombom e muitas cartas de baralho, teve que aguentar uma chuva de bolo.
Não tente imaginar a casa às cinco horas da manhã. Não tente. Nas filmagens, o momento em que minha prima volta para buscar a chave do carro e sair rapidinho é único. Porque ela não precisou imaginar a casa, ela viu. No vídeo, Carol diz: "Não teve briga de bolo. A Janaína não começou uma briga de bolo." E vocês ficam com esse sentimento.
As pessoas foram indo embora, outras foram ficando, uma me ajudou a limpar (MUITO OBRIGADA, LEONARDO!), e a casa estava medianamente apresentável quando mamãe chegou de manhãzinha, para pegar umas coisas e logo sair.
O sábado foi maravilhoso. Pra começar, eu mal consegui dormir, tão contente e satisfeita e felizzzz que eu tava, fiquei me revirando e virando no sofá e assistindo clipes de várias músicas que tocaram na noite, depois Sábado Animado, depois Edward Mãos-de-tesoura (mas desse só o final, porque as pessoas foram acordando e eu fui dando água e banana e fomos papeando de como estávamos felizes). Eu e bff terminamos os salgadinhos, começamos e acabamos uma das caixas de Ferrero Rocher, bebemos o resto de guaraná, assistimos Project Runway e de noitinha pedimos chinês. De noite, quando ela se foi, me deixou na minha prima, porque eu não ia aguentar uma noite naquela imundície. No domingo, depois de momentos de paz e Phoboslab: Z-Type, almocei deliciosa comida caseira e telefonei para minha mãe. Ela tinha acabado de sair de Guaramiranga. Eu tinha que sair JÁ da casa da minha prima e continuar JÁ a limpeza.
Eu nem tinha tocado no quarto da minha mãe. Era bolo, eram estrelas, papel crepom do presente da Contém 1g, sujeirasujeirasujeira. Varri tudo e o resto da casa mais uma vez, passei pano em todos os quartos e estava lavando a louça quando ela chegou. Mami me ajudou a finalizar a cozinha e a sala, a colocar os móveis no lugar rotineiro e organizar o que ia pra reciclagem, o que ia pro lixo, o que continuava na geladeira. Tirei as fitas gomadas que estavam sozinhas do teto, mas deixei os balões que se aguentavam grudados. Nós duas concordamos que foi maravilhoso, mas que outra dessas, nunca mais. Meus joelhos, meus pés, minhas coxas, minhas mãos, minhas costas e meu cabelo que o digam. Em certo momento da festa, Carol acariciou minha juba.
- Tu não passa creme no cabelo não?!
- Passo, né, Carol, mas depois de 4 horas de festafestafesta fica difícil encontrar algum rastro dele.
A noite foi tão maravilhosa que mal consegui estudar Eletromagnetismo ou mesmo me preocupar com a proximidade da prova, com todas as sensações ainda reverberando dentro de mim. Se eu abrir um pouco o coração e fechar os olhos da realidade, consigo fazer minha casa voltar a ser o que foi naquela noite, com uma luz fraca mas colorida, rosa por toda parte, músicamúsica e ainda por cima cheio de amor por meus amigos, consigo recuperar a atmosfera e mal me aguento de contentamento, tudo volta, a alegria, a liberdade, a loucura, a vontade de dançar e abraçar, girar, pular, gritar, toda a felicidade me completa. Foi uma noite maravilhosa, que me deixou mais de bem com a vida do que nunca. Estou cheia de amor por todos que compareceram, sinto nossos corações mais próximos e não entendo porque a vida tem que voltar ao ritmo normal. É simplesmente triste que o tempo passe, a prova de Eletromagnetismo puxou meus pés bem forte pro chão e estou aqui, já normal. Saudade dos dias de nirvana... Se eu pudesse entrar num loop daquela noite... eu acho que entraria.

domingo, 17 de abril de 2011

Celina

Eu tenho uma tia muito querida que é casada com um tio muito querido mas que nunca usou véu e grinalda porque o primeiro casamento desse meu tio foi um dos dois únicos casamentos em que eu estive. O outro foi de uma amiga minha, o que foi uma experiência louca e linda. Cheio de champagne, fotos, músicas clássicas e presentes - o meu foi uma sopeira particularmente amor em que você coloca velas para manter a refeição quente.
Essa minha tia não é velha, nem de idade nem de espírito. No entanto, ela ainda pegou a época das cartas. A época das correntes de endereço. Você inseria seu endereço por último numa lista de 10 e pegava o número 1 para você. Como obrigação, o prazer da troca de cartas. O endereço que ela pegou foi de uma menina chamada Celina que tinha 12 anos na época, assim como minha tia, e morava em Portugal. Elas trocaram cartas incessantemente durante anos. Eu sempre soube dessa história, desde que minha tia e sua filhinha entraram na minha vida, mas os detalhes só vieram aos meus ouvidos numa carona de quase uma hora de duração do alojamento da Ufal até o Centro de Convenções de Alagoas, para a abertura do meu encontro. (Eu estava acompanhada de uns meninos do PET, e simplesmente adorei dividir essa bela intimidade familiar com eles.) As meninas dividiram suas adolescências, suas faculdades, os primeiros empregos e amores. Os anos foram passando, elas começaram a usar as facilidades da internet, email, Skype, webcam, e mantiveram a amizade mais forte que um halterofilista sem nunca terem se abraçado. Minha tia nunca viajou a Portugal, nem Celina veio ao Brasil, e desde sempre tem esse oceano separando as duas.
No ano de 2006 eu fiz 15 anos, e pedi uma viagem a mamãe. Enquanto curtíamos ares internacionais, recebemos um email-notícia dos mais empolgantes: minha priminha, filha de minha tia, tinha nascido. Minha tia deu a ela o nome de Celina.
Celina é um amor de menina hiperativa, está aprendendo a ler e adora brincar com os animaizinhos que mamãe coleciona pela casa. Na nossa geladeira, temos um desenho que ela mesma fez, que na verdade é um arte meio pós-moderna, porque tem um lápis colado à pintura. Uma obra para olhos treinados.
Eu gosto de desenhar, e vivo por aí atrás de outras pessoas que também gostem e um pouco de ânimo para desenhar um pouquinho mais. Ano passado, lendo um blog de uma ilustradora brasileira, vi sobre sua mais recente publicação: um livro infantil chamado Celina, repleto de aquarelas.
O nome dela nem é comum, e mesmo assim tem um livro que se chama Celina, e é infantil, e as ilustrações são de uma ilustradora que faz aquarelas lindas. Quão encantador não é para um criança encontrar um personagem com quem se identificar integralmente, porque as duas meninas têm o mesmo nome? Só de assistir desenho animado as crianças já gritam: eu sou ela! Sou eu! Eu vou ser ela! Eu mesma nunca gostei da ausência de personagens de pele morena, ficava realmente complicado se identificar com alguém.
Faltei me corroer de ansiedade pelo lançamento que não saía nunca, não deu pra comprar no Natal, nem no ano novo e chegou abril, com os seis anos da nossa sobrinhainha favorita. Ontem, num dia em que eu surpreendentemente consegui fazer mais coisas no que tinha incluído na lista:

1) dei aula no cursinho da faculdade com minha bff mais recentemente adquirida depois de anos de ausência de novas amizades femininas, e fomos docemente chamadas de Dupla Dinamite,
2) almocei baião-de-dois com carne de sol,
3) fui numa loja de festas comprar apetrechos para o meu aniversário (que, depois de breves períodos de exaltação e nervosismo, já estou muito crente de que será um grande fiasco),
4) fui numa papelaria comprar mais apetrechos para o meu aniversário, e encontrei lindas canetas de riscar vidro, que eu evidentemente comprei,
5) fui numa livraria, onde eu não encontrei o livro Celina e
6) fui em outra livraria, onde encontrei o livro Celina!!!!

Então, pela primeira vez desde que eu tinha ficado sabendo da existência do livro, eu fiquei sabendo da história do livro. E eu cheguei à conclusão de que de forma alguma eu poderia dar aquele livro para a minha priminha linda, bela e ingênua de cinco, hoje seis, anos.
Pela sinopse, eu nunca imaginaria, mas o livro tratava de... de... de... leucemia. Celina, meiga Celina, tinha câncer. O livro não é ruim. Trata o assunto com carinho e sensibilidade, mas que sementinha ia brotar na cabeça da minha priminha? Alô, não. Compramos uma versão moderna de Rapunzel e um livro bonito da Cosac Naify, que outra tia minha daria de presente.

domingo, 10 de abril de 2011

Lisa See e suas meninas de olhos puxados

Eu não lembro como eu conheci a Lisa See. Eu lembro que ano passado eu passei uns bons meses obcecada com dois livros, que eu tinha visto em algum lugar e cismado que eram exatamente meu tipo de livro, que eu ia amar e ler, reler, reler, ler... Com um deles, eu não acertei, tanto é que está empacado na cômoda com vários outros. Mas Flor da Neve e o Leque Secreto foi uma outra dimensão, exatamente o que eu precisava e tão maravilhoso que seria impossível esperar uma história daquelas.
Jonathan Safran Foer já disse, "I always write out of a need to read something, rather than a need to write something", e eu estou totalmente de acordo. Se minhas últimas novidades são os meus momentos de ampla felicidade, é porque o que eu mais gosto de ler é sobre a vida sendo vivida. Eu gosto de pegar algo, ler e pensar: "Puxa, mas é assim que se deve viver." Ou então, "Isso sim é uma vida de verdade." Não precisa ser só felicidade, o charme é a não-estagnação. Ou a estagnação de forma ativa. É difícil explicar, é vida, se você lê, você vive, e é pra saber o que é.
Então ultimamente minha queda é por livros históricos. (Se todos eles se passam no oriente, vamos deixar a informação de lado, que mesmo assim não é pouco importante.) Vidas que impressionam. Adoro biografias, e acho ótimo esse movimento de quadrinhos autobiográficos, porque quando você pensa que aquilo aconteceu de verdade, o valor da vivência se torna infinito. Mas dá pra sentir uma pitada de falta de criatividade, onde estão as boas histórias, as histórias de verdade, de te deixar acordado no meio da noite sem conseguir dormir depois de terminar inúmeros capítulos no velho lenga-lenga "no próximo eu termino", ou "quando passar o sufoco eu vou dormir", e mesmo depois de ter apagado a luz ficar pensando e pensando e pensando a ponto de ligar a luz, pegar o livro e ler um pouco mais?
Eu digo: Lisa See tem isso. Ela não é minha autora de livros favorita, até por minha autora de livros favorita morreu mês passado e eu estou artisticamente de luto. (Diana Wynne Jones: uma linda vovó.) Só que, nessa recente explosão de amor pela vida, descobri a Lisa See e meu coração se acalentou. E descobri a China.
Flor da Neve e o Leque Secreto é, antes de tudo, uma história de amor. Nós acompanhamos Lírio em sua jornada pela vida, desde os dias de filha até os dias de arroz e sal. É uma história sobre mulheres. A sinopse no verso, tão enxuta, me encanta mesmo não tendo a menor graça:
China, século XIX. Para desvendar a vida e a amizade de duas mulheres é preciso abrir um leque e decifrar uma linguagem secreta: nu shu.

A autora, como eu, ama mulheres. Eu que, aliás, preciso me redimir. Em certo 8 de março coloquei uma tirinha do Quino que eu adorava por causa do trocadilho perfeito. A Mafalda não apenas não reconhece inúmeras participações femininas na história mundial como reduz a presença da mulher ao nível de um grão de areia repartido cem vezes. Lisa See faz diferente: com uma história de um tempo em que aparentemente as mulheres eram menores do que um formiga, quando seu único objetivo de vida era gerar um filho homem para continuar a linhagem, quando tinha seus pés trocidados para não fugir de casa, ela mostra a luta e a incrível presença feminina. Não me digam que as mulheres não são incríveis depois de perceber como, mesmo em situações absurdamente adversas e desfavoráveis, nós encontramos a felicidade. Não é esse o objetivo natural de todos?
O par de sapatos mais amor.
Durante esse século as chinesas seguiam o terrível costume de contenção de pés. Envolvendo os dedos em bandagens e quebrando os ossos, jovens meninas de 6 anos tinham seus pés reduzidos a dimensões menores do que nossas mãos. O sonho de toda garota era conseguir um pé perfeito, um par de lírios dourados, que representavam doçura, harmonia, boas maneiras, obediência ao marido e, sobretudo, a capacidade de prover um filho homem. Quando Lírio é criança, não tem nenhum valor, e sua mãe não a trata com amor. Uma filha representa um peso extra, uma boca a mais para alimentar que, assim que estiver na idade certa, sairá de casa para casar e raramente tornar a ver a família. Uma filha mulher representa, para os pais, uma pequena parasita que suga, suga, suga e então se muda com ingratidão. São os pés em formato de botões de lírio que poderão garantir uma união favorável.  "Quando menina, obedeça ao seu pai; quando esposa, obedeça ao seu marido; quando viúva, obedeça ao seu filho."
Nas casas chinesas, há um cômodo no andar de cima especialmente destinado às mulheres. Com seus pés contidos, elas pouco andam em vida, pois andar não é uma ação confortável. No segundo andar, estão confinadas e impedidas de fugir.
Mas Lírio encontra conforto e amor em algo mais poderoso que o casamento: a união laotong entre duas meninas, que serão velhas iguais por toda a vida e um pouco mais. Um relacionamento laotong é realizado por escolha, e não tem como único objetivo gerar filhos homens, e sim companheirismo emocional e fidelidade eterna. Resumindo: amizade feminina com dedicação exclusiva. Lírio e Flor da Neve combinam perfeitamente nos oito atributos, e a união entre as duas traz paz e alegria. O livro tem a cena entre amigas mais linda que já li, e vou deixá-los bem espantados resumindo tudo em uma palavra: cuspe. (Cuspe!!!!) É belíssima. (E sim, é cuspe mesmo!)
Mesmo assim, uma cena dessas jamais poderia ser lida sozinha, porque o mais incrível da Lisa See é a magia que ela tem em te envolver completamente na época, na história, nos sentimentos e nas sensações. Quando as duas estão grávidas, eu faltei morrer de angústia torcendo por um filho homem. No processo de contenção dos pés, estimulava com a mãe as meninas a andarem e quebrarem seus dedinhos, para que um botão de lírio substituísse suas pranchas. Mas porque eu ficaria feliz com...
O par de pés menos amor.
...isso? Pois eu fiquei. Fiquei porque o livro é maravilhoso e eu estava completamente envolvida na atmosfera inebriante daquela China de cômodos e roupas, homens e bandagens. O livro é lindo. A história segue além da morte de uma das meninas, e usa palavras tão doces que me sentia bebendo chá, serena e em paz.
Em uma mensagem escrita em nu shu, a linguagem secreta das mulheres, no leque-símbolo da amizade das meninas, beleza em cada combinação de palavras:

"Se sua família concordar, eu gostaria de ir visitá-la no décimo primeiro mês. Nós vamos sentar juntas, enfiar nossas agulhas, escolher nossas cores e conversar em voz baixa."

Eu continuei comprando. O próximo livro foi Garotas de Xangai, que a princípio me pareceu tão horrivelmente fútil e ao fim tão grandiosamente belo.
Dessa vez acompanhamos Pérola e May, numa história de amor de irmãs. Quem é a mais bela? Por qual das duas o mocinho é apaixonado? Quem é a mais feliz? São questões que movem o livro, junto com a Segunda Guerra Sino-Japonesa, a Segunda Guerra Mundial e o comunismo. Como nossas mocinhas, que em Xangai, a Paris da Ásia, eram lindas garotas que posavam para calendário com sorrisos cativantes e pele de seda, vão lidar com tantos problemas políticos e imigratórios, já que a única solução de tanta desgraça parece ser uma fuga para os EUA? As irmãs aprendem a agir, serem corajosas ou a se despedaçarem com tamanha infelicidade. Quando as palavras "estupradas" e "repetidamente" são utilizadas na mesma frase, você percebe que tem alguma coisa errada no mundo.
O enredo é complicadíssimo. Adoraria falar sobre como uma das meninas ficou grávida de quem não devia, ou como outra acabou se casando com quem menos esperava, ou como uma delas jamais conseguiu fazer coisa de marido e mulher por amor, mas eu teria que entregar alguma das reviravoltas anteriores, então fico quieta.
Embora nenhum dos livros seja muito feliz, Flor da Neve é doce perto de Garotas. Mesmo se passando em um período mais recente (século XX), as meninas continuam com pouca decisão sobre seus destinos. As guerras também não têm muita compaixão pela dignidade delas. A descrição da cultura chinesa é riquíssima, e incorporada de forma tão natural que você vai absorvendo pouco a pouco até se descobrir... não chinesa, mas quase. Eu fiquei com fome de jook, desejo de vestir cheongsams e vontade de ler mais e acreditar no horóscopo chinês. (Sou carneiro!)