domingo, 10 de abril de 2011

Lisa See e suas meninas de olhos puxados

Eu não lembro como eu conheci a Lisa See. Eu lembro que ano passado eu passei uns bons meses obcecada com dois livros, que eu tinha visto em algum lugar e cismado que eram exatamente meu tipo de livro, que eu ia amar e ler, reler, reler, ler... Com um deles, eu não acertei, tanto é que está empacado na cômoda com vários outros. Mas Flor da Neve e o Leque Secreto foi uma outra dimensão, exatamente o que eu precisava e tão maravilhoso que seria impossível esperar uma história daquelas.
Jonathan Safran Foer já disse, "I always write out of a need to read something, rather than a need to write something", e eu estou totalmente de acordo. Se minhas últimas novidades são os meus momentos de ampla felicidade, é porque o que eu mais gosto de ler é sobre a vida sendo vivida. Eu gosto de pegar algo, ler e pensar: "Puxa, mas é assim que se deve viver." Ou então, "Isso sim é uma vida de verdade." Não precisa ser só felicidade, o charme é a não-estagnação. Ou a estagnação de forma ativa. É difícil explicar, é vida, se você lê, você vive, e é pra saber o que é.
Então ultimamente minha queda é por livros históricos. (Se todos eles se passam no oriente, vamos deixar a informação de lado, que mesmo assim não é pouco importante.) Vidas que impressionam. Adoro biografias, e acho ótimo esse movimento de quadrinhos autobiográficos, porque quando você pensa que aquilo aconteceu de verdade, o valor da vivência se torna infinito. Mas dá pra sentir uma pitada de falta de criatividade, onde estão as boas histórias, as histórias de verdade, de te deixar acordado no meio da noite sem conseguir dormir depois de terminar inúmeros capítulos no velho lenga-lenga "no próximo eu termino", ou "quando passar o sufoco eu vou dormir", e mesmo depois de ter apagado a luz ficar pensando e pensando e pensando a ponto de ligar a luz, pegar o livro e ler um pouco mais?
Eu digo: Lisa See tem isso. Ela não é minha autora de livros favorita, até por minha autora de livros favorita morreu mês passado e eu estou artisticamente de luto. (Diana Wynne Jones: uma linda vovó.) Só que, nessa recente explosão de amor pela vida, descobri a Lisa See e meu coração se acalentou. E descobri a China.
Flor da Neve e o Leque Secreto é, antes de tudo, uma história de amor. Nós acompanhamos Lírio em sua jornada pela vida, desde os dias de filha até os dias de arroz e sal. É uma história sobre mulheres. A sinopse no verso, tão enxuta, me encanta mesmo não tendo a menor graça:
China, século XIX. Para desvendar a vida e a amizade de duas mulheres é preciso abrir um leque e decifrar uma linguagem secreta: nu shu.

A autora, como eu, ama mulheres. Eu que, aliás, preciso me redimir. Em certo 8 de março coloquei uma tirinha do Quino que eu adorava por causa do trocadilho perfeito. A Mafalda não apenas não reconhece inúmeras participações femininas na história mundial como reduz a presença da mulher ao nível de um grão de areia repartido cem vezes. Lisa See faz diferente: com uma história de um tempo em que aparentemente as mulheres eram menores do que um formiga, quando seu único objetivo de vida era gerar um filho homem para continuar a linhagem, quando tinha seus pés trocidados para não fugir de casa, ela mostra a luta e a incrível presença feminina. Não me digam que as mulheres não são incríveis depois de perceber como, mesmo em situações absurdamente adversas e desfavoráveis, nós encontramos a felicidade. Não é esse o objetivo natural de todos?
O par de sapatos mais amor.
Durante esse século as chinesas seguiam o terrível costume de contenção de pés. Envolvendo os dedos em bandagens e quebrando os ossos, jovens meninas de 6 anos tinham seus pés reduzidos a dimensões menores do que nossas mãos. O sonho de toda garota era conseguir um pé perfeito, um par de lírios dourados, que representavam doçura, harmonia, boas maneiras, obediência ao marido e, sobretudo, a capacidade de prover um filho homem. Quando Lírio é criança, não tem nenhum valor, e sua mãe não a trata com amor. Uma filha representa um peso extra, uma boca a mais para alimentar que, assim que estiver na idade certa, sairá de casa para casar e raramente tornar a ver a família. Uma filha mulher representa, para os pais, uma pequena parasita que suga, suga, suga e então se muda com ingratidão. São os pés em formato de botões de lírio que poderão garantir uma união favorável.  "Quando menina, obedeça ao seu pai; quando esposa, obedeça ao seu marido; quando viúva, obedeça ao seu filho."
Nas casas chinesas, há um cômodo no andar de cima especialmente destinado às mulheres. Com seus pés contidos, elas pouco andam em vida, pois andar não é uma ação confortável. No segundo andar, estão confinadas e impedidas de fugir.
Mas Lírio encontra conforto e amor em algo mais poderoso que o casamento: a união laotong entre duas meninas, que serão velhas iguais por toda a vida e um pouco mais. Um relacionamento laotong é realizado por escolha, e não tem como único objetivo gerar filhos homens, e sim companheirismo emocional e fidelidade eterna. Resumindo: amizade feminina com dedicação exclusiva. Lírio e Flor da Neve combinam perfeitamente nos oito atributos, e a união entre as duas traz paz e alegria. O livro tem a cena entre amigas mais linda que já li, e vou deixá-los bem espantados resumindo tudo em uma palavra: cuspe. (Cuspe!!!!) É belíssima. (E sim, é cuspe mesmo!)
Mesmo assim, uma cena dessas jamais poderia ser lida sozinha, porque o mais incrível da Lisa See é a magia que ela tem em te envolver completamente na época, na história, nos sentimentos e nas sensações. Quando as duas estão grávidas, eu faltei morrer de angústia torcendo por um filho homem. No processo de contenção dos pés, estimulava com a mãe as meninas a andarem e quebrarem seus dedinhos, para que um botão de lírio substituísse suas pranchas. Mas porque eu ficaria feliz com...
O par de pés menos amor.
...isso? Pois eu fiquei. Fiquei porque o livro é maravilhoso e eu estava completamente envolvida na atmosfera inebriante daquela China de cômodos e roupas, homens e bandagens. O livro é lindo. A história segue além da morte de uma das meninas, e usa palavras tão doces que me sentia bebendo chá, serena e em paz.
Em uma mensagem escrita em nu shu, a linguagem secreta das mulheres, no leque-símbolo da amizade das meninas, beleza em cada combinação de palavras:

"Se sua família concordar, eu gostaria de ir visitá-la no décimo primeiro mês. Nós vamos sentar juntas, enfiar nossas agulhas, escolher nossas cores e conversar em voz baixa."

Eu continuei comprando. O próximo livro foi Garotas de Xangai, que a princípio me pareceu tão horrivelmente fútil e ao fim tão grandiosamente belo.
Dessa vez acompanhamos Pérola e May, numa história de amor de irmãs. Quem é a mais bela? Por qual das duas o mocinho é apaixonado? Quem é a mais feliz? São questões que movem o livro, junto com a Segunda Guerra Sino-Japonesa, a Segunda Guerra Mundial e o comunismo. Como nossas mocinhas, que em Xangai, a Paris da Ásia, eram lindas garotas que posavam para calendário com sorrisos cativantes e pele de seda, vão lidar com tantos problemas políticos e imigratórios, já que a única solução de tanta desgraça parece ser uma fuga para os EUA? As irmãs aprendem a agir, serem corajosas ou a se despedaçarem com tamanha infelicidade. Quando as palavras "estupradas" e "repetidamente" são utilizadas na mesma frase, você percebe que tem alguma coisa errada no mundo.
O enredo é complicadíssimo. Adoraria falar sobre como uma das meninas ficou grávida de quem não devia, ou como outra acabou se casando com quem menos esperava, ou como uma delas jamais conseguiu fazer coisa de marido e mulher por amor, mas eu teria que entregar alguma das reviravoltas anteriores, então fico quieta.
Embora nenhum dos livros seja muito feliz, Flor da Neve é doce perto de Garotas. Mesmo se passando em um período mais recente (século XX), as meninas continuam com pouca decisão sobre seus destinos. As guerras também não têm muita compaixão pela dignidade delas. A descrição da cultura chinesa é riquíssima, e incorporada de forma tão natural que você vai absorvendo pouco a pouco até se descobrir... não chinesa, mas quase. Eu fiquei com fome de jook, desejo de vestir cheongsams e vontade de ler mais e acreditar no horóscopo chinês. (Sou carneiro!)

4 comentários:

gabipudding disse...

Assim que eu for na livraria, vou procurar. E, com certeza, vou comprar :}

Jana disse...

oi! achei teu blog nos links da irena e achei muito querido teus desenhos haha. Meu nome também é Jana e concordo contigo sobre "é exatamente assim que se deve viver". As chinesas realmente tiveram uma vida difícil (ainda tem diga-se de passagem). Obrigada pela indicação de livro ele me leva aquele filme "balzac e a costureirinha chinesa" :). Bejos!

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